Interviews / Entrevistas

CLARICE NA ALEMANHA

Entrevista com Thales Augusto Barretto de Castro, doutor em literatura brasileira pela Universidade Livre de Berlim.

Quando foi redescoberta nos anos 80 na Alemanha (a primeira tradução para o alemão fora
lançada em 1964), Clarice Lispector tornou-se aqui, num primeiro momento, um expoente da
literatura feminina internacional. Porém, a crítica logo reconheceu a abrangência de sua
diversidade temática, elevando a autora ao cânone literário ocidental. A análise é de Thales
Augusto Barretto de Castro, doutor em literatura brasileira pela Universidade Livre de Berlim
(FU), que concedeu uma entrevista ao VEA sobre a recepção na Alemanha da obra de Clarice
Lispector. Este, aliás, é um dos temas de sua tese de mestrado, “Um outro olhar sobre a
literatura brasileira – Clarice Lispector em tradução alemã”, defendida e premiada pelo
Departamento de Letras Modernas da Universidade de São Paulo e que pode ser encontrada
no link: http://spap.fflch.usp.br/node/77.

Barretto de Castro, professor de português e alemão na Universidade Técnica de Dresden,
vive atualmente em Berlim.

VEA: O que o motivou a estudar Clarice Lispector e sua recepção na Alemanha?

Barretto de Castro: Durante meu curso de Licenciatura em Letras (Português/Alemão) na Universidade Estadual Paulista em Assis (SP, Brasil), tive a oportunidade de me aprofundar na leitura dos textos de Clarice Lispector, com os quais passei a me identificar em verdadeira emoção intelectual,
cingida de fascínio e inquietação. A escritura ímpar de Lispector parecia subliminar e
primorosamente aludir a questões filosóficas das quais eu me ocupara ainda bem jovem
através da leitura de pensadores de expressão alemã como Arthur Schoppenhauer, Friedrich
Nietzsche e Sigmund Freud, que incutiram traços marcantes em minha formação intelectual e
humana.
O inefável deleite que experimentei na literatura de Clarice, paralelamente à diligência em me
aperfeiçoar em língua alemã, corroborou o desenvolvimento de um projeto de iniciação
científica no qual eu cotejava aspectos linguísticos de A maçã no escuro (1961) com sua
edição alemã de 1983, Der Apfel im Dunkeln, traduzida por Curt Meyer-Clason.
Esse prelúdio científico logrou ser positivo sobretudo por promover, na minha trajetória de
pesquisador, um salto da Linguística Contrastiva para a Tradutologia, pois a ideia de dar continuidade a estudos de alcance estritamente linguístico expandiu-se, assumindo uma
preocupação predominantemente intercultural que me pareceu mais afeita à abrangência
temática da obra de Lispector, dando ensejo a uma abordagem mais aprofundada e em maior
consonância com esse objeto de estudo tão rico e diversificado.
Em função desta nova visada, passei a investigar a recepção da romancista brasileira na
Alemanha, constatando, já em um primeiro momento, o número considerável de traduções
alemãs de seus livros. Em contrapartida, detectei a inexistência de estudos que analisassem o
conjunto destas traduções. Em vista desta lacuna, propus-me a suprir parcialmente a carência
de trabalhos acadêmicos brasileiros que versassem sobre esta recepção.
A questão de fundo que norteou este percurso investigativo foi a busca em entender como
uma escritora tida por hermética e existencialista foi recebida em um país que, dentre outros
atributos, é notadamente um centro irradiador da filosofia moderna. Procurei verificar de que
maneira e em que proporção determinadas características do texto clariceano suscitaram um
interesse relativamente incomum nos agentes literários alemães e, mais especificamente,
como uma escritora, mulher e brasileira – que, embora tenha nascido na Ucrânia e vivido nos
Estados Unidos e na Europa, compôs sua obra em língua portuguesa e sempre se afirmou
“brasileira, pronto e ponto” – teria algo a dizer ao público alemão que a lê na época em que
seus textos foram traduzidos para aquela língua.

VEA: Você afirma na sua tese que, até Clarice Lispector ser “descoberta” no exterior, a tendência
dos agentes literários era buscar no Brasil a literatura mais exótica, regional e de denúncia
social, como Jorge Amado. Você poderia nos contar um pouco sobre como se deu este novo
olhar sobre a literatura brasileira com Clarice Lispector?

Barretto de Castro: A história da tradução da literatura brasileira na Alemanha foi marcada por simplificações reducionistas, a saber, pelos estereótipos e/ou clichês acerca de nosso país. Talvez o pioneiro a dissertar sobre textos produzidos na “Terra das Palmeiras” na Alemanha tenha sido o
professor de estética da Universidade de Göttingen, Friedrich Bouterwerk, que no artigo
Geschichte der portugiesischen Poesie und Beredsamkeit (1805) (“História da poesia e
eloquência portuguesa”) trata particularmente de obras de Claudio Manuel da Costa. Após um período de divulgação de narrativas de viagem surge o primeiro romance brasileiro
vertido ao alemão, O Guarani (1856), de José de Alencar, que recebeu, em tradução de Otto
Janke, o título Der Guarany (1872). Desde este início da história da recepção da literatura
brasileira na Alemanha, o índio na sua selva já estava muito presente no imaginário europeu;
fato corroborado pelas editoras, por exemplo, na produção das capas das traduções dos livros
brasileiros lançados naquele continente.
Dando um salto no tempo, verifica-se que o projeto de tradução da obra de nossos maiores
escritores modernos como Guimarães Rosa e Graciliano Ramos também foi marcado, ainda
que com maior complexidade, por alguns estereótipos verificáveis em todo o percurso
histórico deste empreendimento socioeconômico e cultural até então.
Com Lispector a situação se modifica sensivelmente. A primeira tradução da escritora ao
alemão ocorre já em 1964 pela editora Claassen, mas a chegada definitiva da escritora
brasileira no sistema literário alemão está intimamente relacionada à recepção, na década de
1980, dos ensaios da feminista francesa Hélène Cixous. Clarice foi, a partir da divulgação das
assertivas da professora, eleita a grande representante de uma estética feminina na escrita, e
seu romance Água Viva (1973), por sua vez, chegou a receber a alcunha de “Bibel der
weiblichen Literatur” (“Bíblia da literatura feminina”). Ainda que este engavetamento tenha
sido bastante questionado, reverberando duras críticas aos textos de Cixous, verifiquei, em
contrapartida, o papel central que esta apropriação da estudiosa feminista exerceu na primeira
aceitação da obra de Lispector no exterior e, consequentemente, na Alemanha, país onde a
maioria dos consumidores de romance era então constituída por mulheres (talvez ainda o
seja). A obra de Lispector veio, portanto, corresponder a uma lacuna referente à “literatura
feminina” no sistema literário alemão. A partir daí sua obra passa a ser lida por mais leitores
especializados, que logo começariam a apontar para a abrangência de sua diversidade
temática. Assim, Lispector começa a ser considerada como parte do cânone ocidental, sendo
comparada a Woolf, Joyce, Mansfield, Hemingway, Beckett, Bachmann, Rilke, Kafka,
Goethe, Dostoievski, entre outros – ou seja, a escritora brasileira passa a ser lida fora das
lentes do documental regionalista e por meio de diferentes abordagens e correntes de
pensamento, inclusive filosóficas.

VEA: Como você justifica o fato de Clarice Lispector ser a escritora brasileira mais estudada no
exterior? Qual ou quais aspectos de sua obra atraem os alemães particularmente?

Barretto de Castro: Certamente Lispector corresponde ao rol dos escritores brasileiros mais estudados no exterior.
Conforme o que tenho observado nas inúmeras conferências e homenagens à escritora ao
redor do mundo, talvez ela seja de fato a mais estudada de todos. Se quiséssemos sintetizar a
questão relativa ao interesse pela sua obra, poderíamos dizer que Lispector, partindo do
entorno para falar de coisas atemporais, confere a seus textos sentidos fluídos, abertos,
fundamentalmente ambíguos, passíveis de novas significações para além do tempo e dos
espaços sociais em que venha a ser recebida. Abre-se assim um vasto campo de horizontes
interpretativos que fazem com que seus textos sempre tenham algo a dizer, de modo patente
ou subliminar, a todos aqueles que os confrontam na leitura. A experiência de ler Clarice
Lispector é absolutamente singular. Além de falar ao nosso íntimo, Lispector é uma autora
para aqueles que gostam de sair de si e pensar sem fronteiras, estando preparados para sentir
um tipo de alegria pungente advinda da reflexão sobre a dor e a beleza máxima de viver que
nos constituem enquanto seres terrenos, conectados à pluralidade da existência humana e não
humana. A comparação de Clarice Lispector, elaborada pela crítica especializada, com os
maiores autores de expressão alemã como Rainer Maria Rilke, Franz Kafka, Hermann Hesse,
e até mesmo com o filósofo Martin Heidegger, certamente pode instigar o leitor alemão
entusiasta a se aventurar nos textos da escritora brasileira. Contudo, uma vez adentrado o
terreno de sua escritura, adentra-se em mundos recônditos, nos quais qualquer referência
paternalista a outros escritores torna-se redutora diante da infinita potência de significação dos
textos clariceanos, mistério imanente que certamente ainda ocupará os pensadores dos
próximos séculos.


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